terça-feira, 15 de setembro de 2009

Para trabalhar abordagem microgenética...



Texto extraido do Livro : VYGOTSKY EM FOCO; PRESSUPOSTOS E DESDOBRAMENTOS, 2ªed De Harry Daniels (Org.) , Campinas, SP. Editora Papirus,1995 ( pags.136-146)



Em comparação, os gêneros de fala baseados principalmente na função dialógica do texto supõem que cada voz tomará as enunciações das outras vozes como estratégias de pensamento. Em vez de serem vistas como estáticas, como pacotes de informaçôes não transformáveis a serem recebidos e talvez "armazenados", essas enunciações sâo vistas como propiciadoras de um movimento na forma de negociação e de criação de significado. Em geral, as possibilidades de as vozes entrarem em contato são bem maiores e mais ricas no caso da função dialógica do texto do que no caso da função unívoca. Em vez de serem vistas como receptáculos de informações a serem transmitidas, recebidas e armazenadas, as enunciações são vistas como um espaço aberto ao desafio, à interanimação e à transformação.

O gênero de fala da interação em sala de aula

Conforme observou-se anteriormente, a essência de um gênero de fala é estar associado a um conjunto particular de ambientes culturais, históricos e institucionais. São esses ambientes que proporcionam as "situações características da comunicação verbal" mencionadas por Bakhtin (1986): Como os gêneros de fala também sâo os recursos mediacionais que configuram os processos intermental e intramental, desse ponto de vista, esses processos são inerentemente formados pelo ambiente sociocultural no qual ocorrem. Para tornar essa afirmação bastante abstrata um pouco mais concreta, voltamo-nos, nesta seção, para alguns exemplos. Os dois exemplos são provenientes da interação em ambientes instrucionais formais. Entretanto, enfocam gêneros de fala diferentes usados nesses ambientes, gêneros de fala diferenciados segundo a distinção de Lotman entre as funçôes unívoca e dialógica do texto.

Nosso primeiro exemplo vem do discurso em uma sala de aula de jardim de infância, em uma escola pública de subúrbio de classe média nos Estados Unidos. É uma transcrição de uma fita de vídeo feita durante a parte final do ano letivo. A forma de interação refletida nesse exemplo foi amplamente documentada e analisada por Mehan (1979) em seu estudo de "lições de aprendizagem". Assume a forma de uma Iniciação, por parte do professor, seguida de uma Resposta do aluno, que, por sua vez, é seguida pela Avaliação do professor. Essa seqüência "I-R-A" parece ser largamente empregada no discurso de sala de aula pelo mundo afora. Este trecho se desenvolve assim:

(1) Prof.: Quanto tempo os ovos levarão para ser chocados?

(2) Jen.: Oito dias.

(3) Prof.: Ok.

(4) Pro£: Há quantos dias os ovos estão na chocadeira?

(5) Jen.: três dias.

(6) Prof.: Isso, muito bem.

Da perspectiva do estudo de Lotman sobre o dualismo funcional, um fato surpreendente sobre as seqüências I-R-A é que elas sáo baseadas na função unívoca dos textos. Em um intercâmbio, a ênfase está na transmissão de informações do professor para o aluno e do aluno para o professor. Como observa Lotman, nesse caso, qualquer "diferença entre a mensagem no input e a mensagem no output de um circuito de informação pode acontecer apenas como resultado de uma falha no canal de comunicação, e vai ser atribuída às imperfeições técnicas desse sistema" (1988a, pp. 36-37).

Se o aluno entendeu mal o professor, ou vice-versa, o procedimento correto seria repetir ou esclarecer a mensagem de alguma forma, para que a transmissão precisa pudesse acontecer. Em nenhum caso, a enunciação do professor ou do aluno é vista como um dispositivo de pensamento ou como criadora de novos significados. Por exemplo, em nenhum momento seria adequado para o aluno responder à Iniciação do professor com a observação de que a pergunta é muito interessante e que levanta outras questões. Ou, de modo inverso, a Avaliação que o professor faz da Resposta do aluno seria, caracteristicamente, em palavras simples, positivas ou negativas. A Resposta não é tomada como uma enunciação que pode servir como uma estratégia de pensamento ou como o início de uma negociaçâo capaz de criar novos significados. Assim, esse primeiro exemplo ilustra um tipo de discurso de sala de aula no qual a função unívoca das enunciações está em primeiro plano.

Em nosso segundo exemplo, a função dialógica é que está em primeiro plano. Esse exemplo vem de um discurso instrucional em uma sala de aula de um jardim de infância em uma escola pública brasileira. A professora dessa classe participa de um projeto colaborativo, em andamento, entre professores e pesquisadores, elaborado para encontrar formas melhores de atender às necessidades dos alunos que vêm de famílias de baixa renda. Esse esforço colaborativo é motivado pela afirmação de que

A prática social nos ambientes escolares reflete a estrutura e o funcionamento da sociedade, assim, o acesso ao conhecimento institucionalizado `bia" escola não é suficiente para mudar ou superar o caráter reprodutivo e seletivo da educação formal. Embora ouçamos uma reivindicação generalizada por democracia e trabalho conjunto e colaborativo, a prática social nos ambientes escolares ainda está marcada pelo discurso ãütoritário e pelo trabalho individualizado.(Smolka, 1990, p. 2)

Um dos objetivos desse projeto é alterar as formas de discurso encontradas nos ambientes de instruçâo formal de tal forma que sirvam melhor às necessidades dos alunos de baixa renda. Como fizeram outros autores, tais como Tharp e Gallimore (1988), o objetivo é transformar o discurso de sala de aula de tal forma que não seja tão estranho e alienante para as crianças, quando iniciam sua educação escolar.

O discurso que examinaremos a seguir vem de uma sala de aula dejardim de infância para crianças de famílias de média e baixa renda. Em geral, as 2T crianças dessa turma eram consideradas, pelos profissionais da escola, como crianças que apresentavam distúrbios de comportamento e/ou aprendizagem, e eram, por isso estigmatizadas. O programa de tempo integral (das 8h às 16:30h) que essas crianças freqüentavam não é um programa padrâo no sistema escolar local.

A professora dessa classe participou como professora pesquisadora de um projeto de pesquisa que envolveu discussões sobre o discurso em sala de aula. Era seu quinto ano como professora de jardim de infância. Seu estilo de interação era marcadamente diferenciado do estilo de outros professores nesse ambiente, que confiavam muito mais no tipo de seqüência I-R-A, esboçado em nosso primeiro exemplo, nas aulas expositivas e no trabalho que os alunos realizam sentados na classe, sem a ajuda do professor. Esse segundo exemplo é a transcrição de uma fita de vídeo de uma sessão de aproximadamente 15 minutos.

(1) Profª: Ronaldo, ontem, que você não veio, e antes de ontem, aconteceu um monte de coisa diferente aqui na classe.

(2) Pri: Legal!

(3) Profª: Uma coisa que aconteceu é que alguém encontrou uma coisa diferente. Quem quer contar pra ele?

(várias crianças levantam as mãos)

(4) Raf: Eu. (levantando a mão)

(5) Profª: Rafa, conta pro Ronaldo.

(6) Raf A gente achou uma perereca.

(7) Jul: Uma perereca.

(8) Profª: Uma perereca?

(9) Raf: Um sapo!

(10) Profª: A gente... A gente não discutiu isso e vocês não falaram que não era perereca... ?

(11) Cai: É um sapo!

(12) Jul: Um sapo!

(13) Raf: Parece um sapo, esse bicho aí!

(14) Profª: Era um sapo?

(15) Eli: Mas é uma pererequínha.

(16) Chi: Não é.

(17) Adr: É.

(18) Profª: Ó, o que a gente encontrou, Ronaldo.

(pega o vidro com o sapo e coloca-o no centro de um círculo)

(19) Jul: Perereca é filho de sapo!

(20) Bru: Mostra ... deixa o Ronaldo ver.

(21) Eli: Mas é uma pererequinhazinha cheia de pintinha!

(22) Adr: A nossa perereca era assim também!

(23) Jul: Perereca? Perereca é filho de sapo!

(24) Profª: Perereca é filho de sapo?

(25) Crianças (muitas vozes): Não! Não!

(26) Profª: (inaudível) são diferentes.

(27) Sul: São da mesma família!

(28) Chi: ... presa no vidro ...

(29) Eli:..ela tem patinhas amarelas...

(30) Adr: ... pintinhas.

(31) Profª: ... da mesma família.

(32) Crianças(muitas vozes):(indistinto)

(33) Profª: Não, a perereca é diferente.

(34) Crianças(muitas vozes):(indistinto)

(35) Profª: Viu, Ronaldo? Uma coisa que a gente encontrou é esse sapo.

(36) Jul: Perereca.

(37) Profª: Agora, eu tenho uma coisa pra falar do sapo, que eu descobri ontem, que eu não sabia. Ontem, eu perguntei pra uma pessoa que é biólogo, e que leu muitojá de ...

(38) Raf: Sapo.

(39) Profª: Sapos.

(40) Eli: Perereca.

(41) Profª: ...elejá pesquisou muito de sapo e, aí, ele me disse o seguinte: que não adianta nada catar bicho e tacar lá dentro, bicho morto, porque ela não vai ver para comer, ela não enxerga. Ela vê o que tá voando, o que tá se mexendo e, aí, que ela come. O que tá...

(42) Jul: Ela tá pulando!

(43) Profª: É... o que corre, o que voa, aí ela pega. O que tá morto...

(44) Jul: Ela pula!

(45) Profª: ...diz que ela nunca vê, que ela vai morrer aqui, de fome, porque não adianta a gente colocar bichinho morto lá...

(46) Jul: Meu Deus!

(47) Profª: ... porque ela não come.

(48) Jul: Onde que tá aquele siri?

(49) Profª: A gente pode até ver...

(50) Bet: E aquele siri?

(51) Profª: ...os bichos que a gente colocou ontem, ó.

(52) Raf Tudo mortinho.

(53) Profª: ...tão aqui ainda. Ela não comeu.

(54) Eli: ...tem patinha verde e amarela.

(55) Profª: Então, essa pessoa me disse o seguinte: que a gente podia ficar uns dois dias com a p...//aqui com ele, aqui dentro, e, depois disso, precisava abrir pra ele poder viver. Ou senâo ele vai morrer aqui.

Nesse caso, há muitos pontos interessantes a serem observados sobre a interaçâo. Em comparação com a seqüência I-R-A, examinada no primeiro exemplo, em que a ênfase estava na transmissão precisa de informações de um para o outro, entre professor e aluno, há muito mais interanimação de vozes nesse segundo exemplo. Isso não significa que a transmissão precisa de informações nâo é importante. Significa, simplesmente, que, além de servir a essa função unívoca, as enunciações também servem a uma função dialógica; além de transmitir informações, servem como estratégias de pensamento, como criadoras de novos significados.

Uma das formas mais óbvias em que isso se manifesta é na disputa, aparentemente interminável, sobre se o animal que está no vidro é um sapo ou uma perereca. Em vez de, simplesmente, afirmar o que é o animal, e transmitir essa informação às crianças, a professora não encerra a discussão. Em certos pontos (por exemplo, enunciações 33 e 35), a professora afirma que é um sapo, mas, mesmo nesse momento, ela não o faz na forma de uma "palavra impositiva" (Bakhtin, 1981). Tal tipo de animação seria feito por uma voz não aberta ao contato ou ao questionamento.

Em vez de insistir para que as crianças aceitem sua animação de que o animal é um sapo, a professora as envolve em um diálogo que tenciona levá-las a distinguir entre pererecas e sapos (enunciações 8, 14, 24, 31) e lembrá-las das discussôes anteriores, nas quais elas mesmas concluíram que o animal era um sapo (enunciação 10).

O grau em que o gênero de fala invocado nessa discussão é caracterizado pelo contato e pela interanimação de vozes reflete-se em vários fatos adicionais. Um dos mais surpreendentes está no uso que a professora faz de pronomes nas enunciaçôes de (41) a (55). Nas enunciações de (41) a (53), ela utiliza o pronome feminino (ela), que seria apropriado a uma perereca, em vez do pronome masculino (ele), apropriado a um sapo. Para um falante nativo de português, isso não é, obviamente, um tipo de erro gramatical simples. É, sim, algo baseado na interanimação de vozes característica desse segmento de interação. Embora a professora tenha afirmado que o animal é um sapo, o uso dos pronomes revela a "infiltração" (Voloshinov, 1973) das vozes dos alunos, que insistem que o animal é uma perereca. A professora produziu as enunciaçôes concretas (41), (43), (45), (47) e (53), mas é possível ouvir as vozes dos alunos no uso que ela faz dos pronomes (e onde mais for importante). O resultado é que, de uma determinada maneira, essas enunciaçôes são polifônicas.

Essa polifonia é baseada em uma confusâo em que a professora hesita, reconhece e corrige na enunciaçâo (55). Do nosso ponto de vista, isso reflete o tipo de abertura com que ela aborda a discussão com os alunos. Estava tão aberta ao debate, que sua voz começou a incorporar aspectos de algumas das perspectivas dos estudantes. Sem notar, começou a apropriar-se da perspectiva dos alunos que insistiam que o animal era uma perereca. Nesse exemplo, isso reflete a tendência geral do discurso de ser caracterizado pela incorporação das enunciações de outros nas enunciações próprias de alguém. É claro que, no final, a professora não é levada a mudar de opinião sobre a identidade do animal no vidro. Uma vez reconhecido seu erro (veja enunciação 55), ela o corrige imediatamente. Entretanto, esse fato realmente reflete o tipo de abertura para as vozes dos outros, característica do intercâmbio como um todo.

Conclusão: A maioria dos observadores concordaria que as formas de funcionamento intermental encontradas em nossos exemplos são surpreendentemente diferentes. A interação organizada em torno das seqüências I-R-A enfatizou a função unívoca das enunciações e envolveu contato e interação de vozes mínimos. A interação do projeto brasileiro refletiu uma ênfase na função dialógica das enunciações e envolveu formas ricas e relativamente incomuns de contato entre vozes. Quanto às distinções que expusemos anteriormente, refletem o uso de dois gêneros de fala diferentes.

De acordo com a lei genética geral do desenvolvimento cultural, de Vygotsky, poderíamos formular a hipótese de que as formas diferentes de funcionamento intermental associadas a esses gêneros de fala resultariam em formas diferentes de funcionamento intramental. Alguns observadores poderiam ver a diferença entre nossos exemplos simplesmente como uma diferença entre bom e mau ensino (embora pudesse haver opiniões diferentes sobre qual é qual): Desse ponto de vista, poder-se-ia esperar o máximo de benefícios intramentais de uma forma e o mínimo de benefícios da outra.

Entretanto, em vez de tentar entender a diferença entre as duas formas de funcionamento intermental em termos de uma simples escala, talvez fosse mais adequado entendê-las em termos dos resultados intramentais qualitativamente diferentes que apresentam. Isso estaria mais de acordo com as recentes sugestões de pesquisadores como Damon e Phelps (1987) e R,ogoff (1990) de que formas diferentes de funcionamento intermental poderiam beneficiar formas diferentes de funcionamento intramental e de que alguns tipos de exposição mista são naturais e adequados.

Além disso, para tentar entender a diferença entre as duas formas de funcionamento intermental que apresentamos em nossos exemplos, é fundamental levar em conta os históricos de vida e as histórias de socialização bastante diferentes dos alunos envolvidos. Considerando a interação dessa perspectiva, é interessante que vários dos estudos inspirados em Vygotsky tenham indicado que, pelo menos para os alunos com maiores dificuldades nos ambientes escolares formais, talvez fosse bastante útil e produtivo realizar mudanças de vulto nas formas de funcionamento intermental das quais se espera que eles participem. Esse é o denominador comum para estudos de intervenção bem-sucedidos, como os conduzidos por Tharp e Gallimore (1988) e Palinscar e Brown (1984, 1988).

O que une esses estudos aos procedimentos empregados na sala de aula brasileira, descrita anteriormente, é que mudanças importantes foram feitas nos gêneros de fala empregados por professores e alunos. O que distingue os novos gêneros de fala daqueles que esses alunos, de outra forma, encontrariam na instrução formal é uma ênfase na função dialógica. Em vez de tomar as enunciações dos outros como pacotes imutáveis de informações a serem recebidas, eles são estimulados a tomá-las como estratégias de pensamento, como um tipo de matéria-prima para a criação de novos significados.

Se esses estudos, e se um desejo geral de ensinar os alunos a serem pensadores ativos antes que receptores passivos de fatos, sugerem que deveria haver uma mudança maciça nos gêneros de fala empregados nas escolas, por que isso não acontece? Afinal, pelo menos desde o tempo de Dewey, para não dizer de Platão, existem apelos por mudanças no discurso educacional semelhantes às que sugerimos aqui. Para responder a essa pergunta, precisamos voltar às questões que levantamos no início de nosso capítulo. Precisamos voltar, especificamente, à questão de corno a reivindicação de Vygotsky de que "a dimensão social da consciência é primordial no tempo e de fato" (1979, p. 30) pode ser estendida ao plano sociocultural. Em vez de nos contentarmos com uma análise de quanto o funcionamento intramental está enraizado no funcionamento intermental, precisamos continuar a formular perguntas sobre o porquê de o funcionamento intramental ser organizado da forma como é, e a chave para isso é compreender como o funcionamento intermental é configurado pelos ambientes culturais, históricos e institucionais em que ocorre.

Se buscarmos essa linha de raciocínio, fica evidente que o funcionamento intermental nem sempre é estruturado de acordo com o que seria eficaz para produzir os resultados intramentais que abertamente defendemos. Conforme sugerem autores como Bourdieu (1984) e Smolka (1990), a estrutura do discurso em ambientes educacionais formais pode ter tanto a ver com a produção e reprodução do capital cultural e, conseqüentemente, da, posição social relativa dos grupos, quanto tem a ver com o crescimento cognitivo. Como resultado, se entendermos a afirmaçâo de Vygotsky sobre a prioridade da socialidade como teria desejado o Vygotsky metodólogo, mais do que o Vygotsky psicólogo, teremos que incorporar as questões socioculturais a nossos estudos, em um grau bem mais alto do que temos feito.

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